Adriana Lage conversa com a supermãe Jô Moraes que é audiodescritora e mãe de Daniel Monteiro
Publicação:
Adriana Lage

Aproveitando a proximidade do Dia das Mães, resolvi compartilhar com meus leitores duas histórias fantásticas. Embora considere uma data comercial, não posso negar que essas mulheres possuem um poder especial e são fundamentais em nossas vidas. Na verdade, merecem mimos diários! Sempre me pergunto: o que seria de mim sem Dona Lina? Com certeza, se hoje sou uma pessoa realizada e admirada, devo muito a ela. Finalmente, minhas sonhadas e merecidas férias chegaram. Quando esse texto for publicado, se Deus quiser, estarei lá no ‘estrangeiro’ passeando com minha mãe e proporcionando a ela uma semana de descanso.
Na semana passada, compartilhei com vocês a bela história de uma mãe com deficiência. Hoje, chegou a vez de Jô Moraes! Josefina Vieira de Moraes ou, simplesmente, Jô Moraes, moradora da Zona Norte de São Paulo/ SP, audiodescritora, é mãe de dois filhos: Daniel e André. Jô e Daniel tiveram participação relevante na Rede Saci. Para quem não sabe seu filho, Daniel Monteiro, é um cego que admiro muito e do qual sou suspeitíssima para falar. Quem quiser saber mais sobre ele, pode ler a (momento tiete total) que fizemos entrevista (no ano passado.
Ainda não conheço a Jô Moraes pessoalmente, mas, posso confessar que sua história me encantou e emocionou. Essa mulher admirável me fez lembrar uma música de Milton Nascimento da qual gosto muito: Maria, Maria. Na falta das palavras ideais, nada melhor que recorrer ao Milton para traduzir o que penso sobre minha entrevistada: “Mas é preciso ter força / É preciso ter raça / É preciso ter gana sempre / Quem traz no corpo a marca / Maria, Maria / Mistura a dor e a alegria... / Mas é preciso ter manha / É preciso ter graça / É preciso ter sonho, sempre / Quem traz na pele essa marca / Possui a estranha mania / De ter fé na vida”. Garra, graça, força, fé... Com vocês, Jô Moraes!
Adriana: Qual foi sua reação quando descobriu a deficiência do Daniel? Onde buscou ajuda?
Jô Moraes: Quando fiquei grávida e estava no quarto mês de gestação, comecei a prestar atenção em pessoas com deficiência visual. Não em outras; somente em PCD (pessoa com deficiência) visual. Coisa que nunca havia acontecido! A princípio, isso me pareceu estranho. Comentei com meu marido, mas ele não deu muita importância. Então, me acostumei com isso e passei a oferecer ajuda para atravessar a rua, subir e descer de ônibus. Enfim, passei a conviver de perto com essas pessoas como se isso fosse uma preparação. Sou muito intuitiva e acredito em minhas intuições. Quando o Daniel nasceu ele enxergava. Nasceu prematuro de seis meses pesando 1,110kg. Chegou a pesar 750 gramas. Como seu pulmão não havia descolado, ele tinha dificuldade para respirar e passava a maior parte do tempo em contato com oxigênio puro. E isso descolou sua retina. Após quase três meses na UTI neonatal, com alimentação enteral, onde ele teve inúmeras complicações, chegando quase ao óbito, ele teve alta (pesando 2 kg). Só fui saber que ele tinha deficiência visual, após um mês, quando percebi que ele não fixava o olhar. Fomos ao oftalmologista que diagnosticou “retinopatia da prematuridade". Realmente, não foi uma notícia agradável de receber. Meu marido ficou desesperado. Então, eu tive que ser forte para tomar as providências necessárias. E o que aconteceu na minha gravidez me fez entender que eu estava sendo "preparada". Se tive essa oportunidade, o que deveria fazer era encarar tudo de frente. Algumas vezes, eu me abatia por não conhecer as necessidades do meu filho cego e por não saber como seria seu futuro. Fomos a todos os institutos e médicos. O diagnóstico era sempre o mesmo. Eu fazia promessas aos santos de todas as religiões e nada! Um dia eu acordei e pensei: chega de procurar o que sei que não vou encontrar. E rezei... Pedi a Deus que, já que Ele tinha me dado uma criança cega, que me ajudasse a fazer com que ele nunca precisasse ser guiado. A primeira Instituição procurada foi a Dorina Nowill. Depois vieram inúmeras... A partir daí, fui atrás de aprender, ler, participar de palestras, cursos, etc. Mas tive muito apoio de outras mães. Tanto é que fizemos a lista "mãe de deficiente".
Adriana: Você citou a lista “mãe de deficiente” criada na Rede Saci. De onde surgiu a idéia para criá-la?
Jô Moraes: A lista foi criada porque eu tive muita ajuda de outras mães em relação à deficiência visual. Então, pensei que eu também poderia ajudar a outras mães que, assim como eu, não sabiam nada a respeito. Eu era a moderadora e, a princípio, eram somente mães de pessoas com deficiência visual. Após alguns meses, foram entrando outras deficiências e essas mães interagiam entre si. Quando percebi que estava tudo correndo bem, saí de cena e a lista continuou sem moderadora, pois já não era necessário. Mas eu sempre lia os artigos e, quando podia, orientava e ajudava.
Adriana: Ainda hoje, infelizmente, é comum pais abandonarem suas famílias com a chegada de um filho com deficiência. O pai do Daniel lidou bem com a situação?
Jô Moraes: Embora quem corresse com tudo fosse eu, ele corria atrás de nos dar as condições necessárias para a aquisição de materiais nada baratos. Ele ficou bem abalado com a situação, mas nunca nos abandonou.
Adriana: O fato de ter um filho com deficiência lhe trouxe algum receio para encarar uma nova gravidez?
Jô Moraes: Não pelo fato da deficiência, mas sim por saber que eu teria que dividir meu tempo entre levar o Daniel aos inúmeros compromissos e cuidar de um bebê. Mas deu certo!
Adriana: Quais foram seus principais medos? Como lidou com isso?
Jô Moraes: Eu sempre fui muito alegre e, um dia, na Fundação Dorina, uma das atendentes me viu quieta e me chamou para conversar. Então, falei que tinha alguma preocupação com a idade adolescente do Daniel, principalmente com namoradas. (naquela época, ele tinha de dois a três anos). Ela me levou a outra Instituição, que ficava em frente. Era um verdadeiro depósito de pessoas adolescentes e adultas com deficiências múltiplas. A maioria possuía deficiência intelectual e doença mental. Pessoas sem família, sem recursos, abandonadas... E ela me perguntou: “O que o Daniel tem mesmo? Qual será a dificuldade dele”? Então, acreditei que sua deficiência nunca o privaria de qualquer coisa que ele quisesse fazer. Ele era absolutamente capaz somente necessitava de algum apoio.
Adriana: Em algum momento, você pensou que não daria conta? Pensou em desistir?
Jô Moraes: Nunca. Nunca desisto ou abandono o que comecei a fazer; imagine com um filho...
Adriana: De onde veio/vem sua força? Quem são seus ídolos?
Jô Moraes: Eu sou forte e encaro as coisas de frente. Sou otimista e acredito em Deus. Não idolatro ninguém, porém tenho muito respeito pelo Dr. Victor Siaulys.
Adriana: Querendo ou não, um filho com deficiência exige mais cuidado em alguns momentos. É possível administrar isso sem prejudicar a atenção dispensada aos outros filhos e sem gerar ciúmes?
Jô Moraes: É difícil. Eles gostam de disputar minha atenção e, por mais que eu faça, sempre alguém reclama. Os três são ciumentos (o Daniel menos).
Adriana: Por tudo o que já li e ouvi sobre o Daniel, creio que você tenha tido um papel relevante na história dele. Fale um pouco sobre isso. Como foi, por exemplo, na escola, na infância... Como contribuiu para a independência dele?
Jô Moraes: Quando criança, eu explicava que ele não enxergava e que era para ignorar os apelidos que as outras crianças colocariam nele por conta disso. Na escola, eu optei por colocá-lo em escola regular; nada contra as Instituições de ensino para cegos, mas acredito que é bem mais fácil a interação após o período escolar. Por duas vezes, ele frequentou o pré. Numa das vezes, uma mãe reclamou dizendo que o Daniel não deveria estar ali, pois era rico, ia de carro para a escola e estava tirando o lugar de outra criança. Tive que tirá-lo de lá. Então, uma vizinha permitiu que ele fosse à escolinha dela somente para brincar. Como ele gostou, fiz a matrícula. Após dezenas de "não", "não sabemos" e "não podemos" das escolas do meu bairro, consegui uma escola, em Santo Amaro, onde matriculei meus dois filhos. Como era muito longe, eu ficava esperando a saída deles. Depois, vieram para a Casa Verde, onde o Daniel sofreu discriminação por parte da Diretora. Tanto ela quanto a escola foram punidas. Depois, foram para o Colégio Adventista. Fiz uma sala de recursos na qual eu dava suporte para os professores. Transcrevia seus livros, adaptava os materiais, corrigia e aplicava as provas, etc. Lá, também, o Daniel sofreu bullying, sendo o agressor punido. Sempre ensinei o Daniel a respeitar as pessoas, mas também a exigir respeito e brigar por ele. Então, o Daniel briga pelos seus direitos, pois eu o ensinei a fazer isso. Ensinei a não dar o primeiro tapa, mas também a não levar o segundo... Ensinei a sempre falar a verdade, pois isso dá credibilidade. Sempre participei e acompanhei o Daniel em tudo, fizemos dez anos de locomoção, mobilidade, AVD, música, natação, dança, etc. Combinamos que eu faria isso até ele entrar na faculdade. Até os dezoito anos, eu seria sua sombra. Quando terminamos o cursinho, ele já tinha certa independência e autonomia. Foi buscar o cão- guia e seguiu sozinho, mas sabendo que sempre poderá contar comigo incondicionalmente.
Adriana: No dia a dia, como a família aprendeu a lidar com a cegueira? Foram necessárias mudanças? Quais?
Jô Moraes: O Daniel era o mais novo de todos os primos. Então, era paparicado. Às vezes estragavam o treinamento.
Adriana: Qual foi sua reação quando o Daniel resolveu morar sozinho?
Jô Moraes: Dei o maior apoio. Essa sempre foi a minha intenção: que ele fosse independente.
Adriana: Como fica esse coraçãozinho de mãe sabendo que seu filho não pára quieto um segundo e que vai pra todo lado sozinho? Qual o segredo para não se preocupar demais e se manter calma?
Jô Moraes: Eu sei a educação que dei e o treinamento que o Daniel teve. Procurei dar a ele o melhor. Nunca tive o menor problema com preocupação. Segredo? Confiança.
Adriana: Existem prós e contras na vida de uma mãe de pessoa com deficiência?
Jô Moraes: Atualmente, somente prós. Não pensem que foi tudo maravilhoso sempre. Tive que brigar muito, processar, ameaçar e discutir para que o Daniel se tornasse alguém respeitado enquanto estava sob minha guarda. Então, ele passou a brigar e a exigir sozinho o que era seu direito. Também passou a brigar pelos direitos de outras pessoas. Mas sempre andamos lado a lado, somos companheiros e amigos. Nós discutimos e conversamos muito. Eu sei que posso contar com ele e ele comigo.
Adriana: Como definiria a Jô Moraes?
Jô Moraes: Guerreira e obstinada.
Adriana: Até o Daniel se tornar independente, foi possível conciliar a vida de mãe, trabalhadora, esposa e mulher sem grandes transtornos? Como conciliou tudo isso?
Jô Moraes: Possível foi tanto é que minha família continua unida. Mas, não foi fácil. Foi difícil conquistar meu lugar de mulher, antes de ser esposa e mãe (eu mesma tinha invertido essa ordem). Conciliar é possível com firmeza e doçura (não necessariamente nesta ordem).
Adriana: O que o Daniel representa na sua vida?
Jô Moraes: O imenso amor e o respeito que uma pessoa pode ter por outra. E que, com força, determinação e coragem se pode mudar qualquer condição ou situação por mais desfavorável que um dia possa parecer.
Adriana: Diminuindo um pouquinho o IBOPE que demos ao Daniel nessa entrevista (ele já deve estar todo convencido! Se achando... rsrs), nos conte mais sobre seu trabalho como audiodescritora.

Jô Moraes: Sou audiodescritora informal desde que o Dan era pequeno. Na época escolar, fazia a descrição de imagens em livros didáticos e paradidáticos. Como sempre estimulei o lado "cultura", tinha que oferecer a ele as condições necessárias para tal. Então, quando ele se interessava por alguma atividade cultural, eu ia primeiro e assistia (mesmo ele estando comigo, nesse primeiro momento, ele não me interrompia com perguntas); eu anotava o que seria mais relevante e, em outro momento, íamos os dois. No caminho, eu fazia um resumo. Depois, sentávamos afastados dos demais espectadores, por respeito a eles, e eu ia descrevendo no ouvido dele. Naquela época, já pensávamos em algum aparelho como gravadores e fones, mas foi inviável. Quando começou a audiodescrição, o Daniel participava de todos os eventos culturais com esses recursos a convite da Professora Livia Motta. Eu, como estava num momento de introspecção planejado, não o acompanhava. A minha intenção era que ele fosse sem a minha companhia mesmo, para ter mais autonomia, empoderamento e independência. Em 2009, teve um curso no Laramara e eu ganhei uma bolsa. A princípio, eu não queria ir. Mas, por insistência do Daniel, eu fui. Gostei muito da idéia de ampliar o entendimento das pessoas com deficiência visual em eventos que elas escolhem participar. Depois, fiz outros cursos: na USP, com Eliana Franco e no Anhembi com o Francisco Lima. Todos são "feras" da tradução visual com ênfase na audiodescrição. Fiz muitos trabalhos voluntários e acabei trabalhando com as Secretarias de Estado e Municipal em eventos com audiodescrição simultânea. Hoje, trabalho mais com imagens estáticas em livros didáticos. Fiz audiodescrição em um livro para a Fundação Roberto Marinho no mês passado e trabalhei na Reatech pela Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (SMPED).
Adriana: Em sua opinião, qual é o cenário da audiodescrição no Brasil hoje?
Jô Moraes: A audiodescrição está sendo aplicada, mas poderia ser bem melhor. Mas, com certeza, chegará lá. Existem blogs e sites fantásticos que nos ajudam a divulgar e a entender melhor este universo. Além disso, as próprias pessoas com deficiência aprenderam a exigir este direito.
Adriana: Qual mensagem deixaria para as mães de pessoas com deficiência?
Jô Moraes: "Deus não escolhe os capacitados; capacita os escolhidos".
Finalizo o texto de hoje com um poema de Mário Quintana que traduz muito bem o que as mães representam em nossas vidas. Um feliz dia das mães para Dona Lina, para a Jô Moraes, pra minha irmã que está grávida do meu primeiro sobrinho (bom demais da conta virar titia de vez!) e para todas as mulheres que levam a sério esse ‘cargo’ de mãe.
Mãe
Mãe... São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o Céu tem três letras...
E nelas cabe o infinito.
Para louvar nossa mãe,
Todo o bem que se disse
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer...
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do Céu
E apenas menor que Deus!
Mário Quintana

Aproveitando a proximidade do Dia das Mães, resolvi compartilhar com meus leitores duas histórias fantásticas. Embora considere uma data comercial, não posso negar que essas mulheres possuem um poder especial e são fundamentais em nossas vidas. Na verdade, merecem mimos diários! Sempre me pergunto: o que seria de mim sem Dona Lina? Com certeza, se hoje sou uma pessoa realizada e admirada, devo muito a ela. Finalmente, minhas sonhadas e merecidas férias chegaram. Quando esse texto for publicado, se Deus quiser, estarei lá no ‘estrangeiro’ passeando com minha mãe e proporcionando a ela uma semana de descanso.
Na semana passada, compartilhei com vocês a bela história de uma mãe com deficiência. Hoje, chegou a vez de Jô Moraes! Josefina Vieira de Moraes ou, simplesmente, Jô Moraes, moradora da Zona Norte de São Paulo/ SP, audiodescritora, é mãe de dois filhos: Daniel e André. Jô e Daniel tiveram participação relevante na Rede Saci. Para quem não sabe seu filho, Daniel Monteiro, é um cego que admiro muito e do qual sou suspeitíssima para falar. Quem quiser saber mais sobre ele, pode ler a (momento tiete total) que fizemos entrevista (no ano passado.
Ainda não conheço a Jô Moraes pessoalmente, mas, posso confessar que sua história me encantou e emocionou. Essa mulher admirável me fez lembrar uma música de Milton Nascimento da qual gosto muito: Maria, Maria. Na falta das palavras ideais, nada melhor que recorrer ao Milton para traduzir o que penso sobre minha entrevistada: “Mas é preciso ter força / É preciso ter raça / É preciso ter gana sempre / Quem traz no corpo a marca / Maria, Maria / Mistura a dor e a alegria... / Mas é preciso ter manha / É preciso ter graça / É preciso ter sonho, sempre / Quem traz na pele essa marca / Possui a estranha mania / De ter fé na vida”. Garra, graça, força, fé... Com vocês, Jô Moraes!
Adriana: Qual foi sua reação quando descobriu a deficiência do Daniel? Onde buscou ajuda?
Jô Moraes: Quando fiquei grávida e estava no quarto mês de gestação, comecei a prestar atenção em pessoas com deficiência visual. Não em outras; somente em PCD (pessoa com deficiência) visual. Coisa que nunca havia acontecido! A princípio, isso me pareceu estranho. Comentei com meu marido, mas ele não deu muita importância. Então, me acostumei com isso e passei a oferecer ajuda para atravessar a rua, subir e descer de ônibus. Enfim, passei a conviver de perto com essas pessoas como se isso fosse uma preparação. Sou muito intuitiva e acredito em minhas intuições. Quando o Daniel nasceu ele enxergava. Nasceu prematuro de seis meses pesando 1,110kg. Chegou a pesar 750 gramas. Como seu pulmão não havia descolado, ele tinha dificuldade para respirar e passava a maior parte do tempo em contato com oxigênio puro. E isso descolou sua retina. Após quase três meses na UTI neonatal, com alimentação enteral, onde ele teve inúmeras complicações, chegando quase ao óbito, ele teve alta (pesando 2 kg). Só fui saber que ele tinha deficiência visual, após um mês, quando percebi que ele não fixava o olhar. Fomos ao oftalmologista que diagnosticou “retinopatia da prematuridade". Realmente, não foi uma notícia agradável de receber. Meu marido ficou desesperado. Então, eu tive que ser forte para tomar as providências necessárias. E o que aconteceu na minha gravidez me fez entender que eu estava sendo "preparada". Se tive essa oportunidade, o que deveria fazer era encarar tudo de frente. Algumas vezes, eu me abatia por não conhecer as necessidades do meu filho cego e por não saber como seria seu futuro. Fomos a todos os institutos e médicos. O diagnóstico era sempre o mesmo. Eu fazia promessas aos santos de todas as religiões e nada! Um dia eu acordei e pensei: chega de procurar o que sei que não vou encontrar. E rezei... Pedi a Deus que, já que Ele tinha me dado uma criança cega, que me ajudasse a fazer com que ele nunca precisasse ser guiado. A primeira Instituição procurada foi a Dorina Nowill. Depois vieram inúmeras... A partir daí, fui atrás de aprender, ler, participar de palestras, cursos, etc. Mas tive muito apoio de outras mães. Tanto é que fizemos a lista "mãe de deficiente".
Adriana: Você citou a lista “mãe de deficiente” criada na Rede Saci. De onde surgiu a idéia para criá-la?
Jô Moraes: A lista foi criada porque eu tive muita ajuda de outras mães em relação à deficiência visual. Então, pensei que eu também poderia ajudar a outras mães que, assim como eu, não sabiam nada a respeito. Eu era a moderadora e, a princípio, eram somente mães de pessoas com deficiência visual. Após alguns meses, foram entrando outras deficiências e essas mães interagiam entre si. Quando percebi que estava tudo correndo bem, saí de cena e a lista continuou sem moderadora, pois já não era necessário. Mas eu sempre lia os artigos e, quando podia, orientava e ajudava.
Adriana: Ainda hoje, infelizmente, é comum pais abandonarem suas famílias com a chegada de um filho com deficiência. O pai do Daniel lidou bem com a situação?
Jô Moraes: Embora quem corresse com tudo fosse eu, ele corria atrás de nos dar as condições necessárias para a aquisição de materiais nada baratos. Ele ficou bem abalado com a situação, mas nunca nos abandonou.
Adriana: O fato de ter um filho com deficiência lhe trouxe algum receio para encarar uma nova gravidez?
Jô Moraes: Não pelo fato da deficiência, mas sim por saber que eu teria que dividir meu tempo entre levar o Daniel aos inúmeros compromissos e cuidar de um bebê. Mas deu certo!
Adriana: Quais foram seus principais medos? Como lidou com isso?
Jô Moraes: Eu sempre fui muito alegre e, um dia, na Fundação Dorina, uma das atendentes me viu quieta e me chamou para conversar. Então, falei que tinha alguma preocupação com a idade adolescente do Daniel, principalmente com namoradas. (naquela época, ele tinha de dois a três anos). Ela me levou a outra Instituição, que ficava em frente. Era um verdadeiro depósito de pessoas adolescentes e adultas com deficiências múltiplas. A maioria possuía deficiência intelectual e doença mental. Pessoas sem família, sem recursos, abandonadas... E ela me perguntou: “O que o Daniel tem mesmo? Qual será a dificuldade dele”? Então, acreditei que sua deficiência nunca o privaria de qualquer coisa que ele quisesse fazer. Ele era absolutamente capaz somente necessitava de algum apoio.
Adriana: Em algum momento, você pensou que não daria conta? Pensou em desistir?
Jô Moraes: Nunca. Nunca desisto ou abandono o que comecei a fazer; imagine com um filho...
Adriana: De onde veio/vem sua força? Quem são seus ídolos?
Jô Moraes: Eu sou forte e encaro as coisas de frente. Sou otimista e acredito em Deus. Não idolatro ninguém, porém tenho muito respeito pelo Dr. Victor Siaulys.
Adriana: Querendo ou não, um filho com deficiência exige mais cuidado em alguns momentos. É possível administrar isso sem prejudicar a atenção dispensada aos outros filhos e sem gerar ciúmes?
Jô Moraes: É difícil. Eles gostam de disputar minha atenção e, por mais que eu faça, sempre alguém reclama. Os três são ciumentos (o Daniel menos).
Adriana: Por tudo o que já li e ouvi sobre o Daniel, creio que você tenha tido um papel relevante na história dele. Fale um pouco sobre isso. Como foi, por exemplo, na escola, na infância... Como contribuiu para a independência dele?
Jô Moraes: Quando criança, eu explicava que ele não enxergava e que era para ignorar os apelidos que as outras crianças colocariam nele por conta disso. Na escola, eu optei por colocá-lo em escola regular; nada contra as Instituições de ensino para cegos, mas acredito que é bem mais fácil a interação após o período escolar. Por duas vezes, ele frequentou o pré. Numa das vezes, uma mãe reclamou dizendo que o Daniel não deveria estar ali, pois era rico, ia de carro para a escola e estava tirando o lugar de outra criança. Tive que tirá-lo de lá. Então, uma vizinha permitiu que ele fosse à escolinha dela somente para brincar. Como ele gostou, fiz a matrícula. Após dezenas de "não", "não sabemos" e "não podemos" das escolas do meu bairro, consegui uma escola, em Santo Amaro, onde matriculei meus dois filhos. Como era muito longe, eu ficava esperando a saída deles. Depois, vieram para a Casa Verde, onde o Daniel sofreu discriminação por parte da Diretora. Tanto ela quanto a escola foram punidas. Depois, foram para o Colégio Adventista. Fiz uma sala de recursos na qual eu dava suporte para os professores. Transcrevia seus livros, adaptava os materiais, corrigia e aplicava as provas, etc. Lá, também, o Daniel sofreu bullying, sendo o agressor punido. Sempre ensinei o Daniel a respeitar as pessoas, mas também a exigir respeito e brigar por ele. Então, o Daniel briga pelos seus direitos, pois eu o ensinei a fazer isso. Ensinei a não dar o primeiro tapa, mas também a não levar o segundo... Ensinei a sempre falar a verdade, pois isso dá credibilidade. Sempre participei e acompanhei o Daniel em tudo, fizemos dez anos de locomoção, mobilidade, AVD, música, natação, dança, etc. Combinamos que eu faria isso até ele entrar na faculdade. Até os dezoito anos, eu seria sua sombra. Quando terminamos o cursinho, ele já tinha certa independência e autonomia. Foi buscar o cão- guia e seguiu sozinho, mas sabendo que sempre poderá contar comigo incondicionalmente.
Adriana: No dia a dia, como a família aprendeu a lidar com a cegueira? Foram necessárias mudanças? Quais?
Jô Moraes: O Daniel era o mais novo de todos os primos. Então, era paparicado. Às vezes estragavam o treinamento.
Adriana: Qual foi sua reação quando o Daniel resolveu morar sozinho?
Jô Moraes: Dei o maior apoio. Essa sempre foi a minha intenção: que ele fosse independente.
Adriana: Como fica esse coraçãozinho de mãe sabendo que seu filho não pára quieto um segundo e que vai pra todo lado sozinho? Qual o segredo para não se preocupar demais e se manter calma?
Jô Moraes: Eu sei a educação que dei e o treinamento que o Daniel teve. Procurei dar a ele o melhor. Nunca tive o menor problema com preocupação. Segredo? Confiança.
Adriana: Existem prós e contras na vida de uma mãe de pessoa com deficiência?
Jô Moraes: Atualmente, somente prós. Não pensem que foi tudo maravilhoso sempre. Tive que brigar muito, processar, ameaçar e discutir para que o Daniel se tornasse alguém respeitado enquanto estava sob minha guarda. Então, ele passou a brigar e a exigir sozinho o que era seu direito. Também passou a brigar pelos direitos de outras pessoas. Mas sempre andamos lado a lado, somos companheiros e amigos. Nós discutimos e conversamos muito. Eu sei que posso contar com ele e ele comigo.
Adriana: Como definiria a Jô Moraes?
Jô Moraes: Guerreira e obstinada.
Adriana: Até o Daniel se tornar independente, foi possível conciliar a vida de mãe, trabalhadora, esposa e mulher sem grandes transtornos? Como conciliou tudo isso?
Jô Moraes: Possível foi tanto é que minha família continua unida. Mas, não foi fácil. Foi difícil conquistar meu lugar de mulher, antes de ser esposa e mãe (eu mesma tinha invertido essa ordem). Conciliar é possível com firmeza e doçura (não necessariamente nesta ordem).
Adriana: O que o Daniel representa na sua vida?
Jô Moraes: O imenso amor e o respeito que uma pessoa pode ter por outra. E que, com força, determinação e coragem se pode mudar qualquer condição ou situação por mais desfavorável que um dia possa parecer.
Adriana: Diminuindo um pouquinho o IBOPE que demos ao Daniel nessa entrevista (ele já deve estar todo convencido! Se achando... rsrs), nos conte mais sobre seu trabalho como audiodescritora.

Jô Moraes: Sou audiodescritora informal desde que o Dan era pequeno. Na época escolar, fazia a descrição de imagens em livros didáticos e paradidáticos. Como sempre estimulei o lado "cultura", tinha que oferecer a ele as condições necessárias para tal. Então, quando ele se interessava por alguma atividade cultural, eu ia primeiro e assistia (mesmo ele estando comigo, nesse primeiro momento, ele não me interrompia com perguntas); eu anotava o que seria mais relevante e, em outro momento, íamos os dois. No caminho, eu fazia um resumo. Depois, sentávamos afastados dos demais espectadores, por respeito a eles, e eu ia descrevendo no ouvido dele. Naquela época, já pensávamos em algum aparelho como gravadores e fones, mas foi inviável. Quando começou a audiodescrição, o Daniel participava de todos os eventos culturais com esses recursos a convite da Professora Livia Motta. Eu, como estava num momento de introspecção planejado, não o acompanhava. A minha intenção era que ele fosse sem a minha companhia mesmo, para ter mais autonomia, empoderamento e independência. Em 2009, teve um curso no Laramara e eu ganhei uma bolsa. A princípio, eu não queria ir. Mas, por insistência do Daniel, eu fui. Gostei muito da idéia de ampliar o entendimento das pessoas com deficiência visual em eventos que elas escolhem participar. Depois, fiz outros cursos: na USP, com Eliana Franco e no Anhembi com o Francisco Lima. Todos são "feras" da tradução visual com ênfase na audiodescrição. Fiz muitos trabalhos voluntários e acabei trabalhando com as Secretarias de Estado e Municipal em eventos com audiodescrição simultânea. Hoje, trabalho mais com imagens estáticas em livros didáticos. Fiz audiodescrição em um livro para a Fundação Roberto Marinho no mês passado e trabalhei na Reatech pela Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida (SMPED).
Adriana: Em sua opinião, qual é o cenário da audiodescrição no Brasil hoje?
Jô Moraes: A audiodescrição está sendo aplicada, mas poderia ser bem melhor. Mas, com certeza, chegará lá. Existem blogs e sites fantásticos que nos ajudam a divulgar e a entender melhor este universo. Além disso, as próprias pessoas com deficiência aprenderam a exigir este direito.
Adriana: Qual mensagem deixaria para as mães de pessoas com deficiência?
Jô Moraes: "Deus não escolhe os capacitados; capacita os escolhidos".
Finalizo o texto de hoje com um poema de Mário Quintana que traduz muito bem o que as mães representam em nossas vidas. Um feliz dia das mães para Dona Lina, para a Jô Moraes, pra minha irmã que está grávida do meu primeiro sobrinho (bom demais da conta virar titia de vez!) e para todas as mulheres que levam a sério esse ‘cargo’ de mãe.
Mãe
Mãe... São três letras apenas
As desse nome bendito:
Também o Céu tem três letras...
E nelas cabe o infinito.
Para louvar nossa mãe,
Todo o bem que se disse
Nunca há de ser tão grande
Como o bem que ela nos quer...
Palavra tão pequenina,
Bem sabem os lábios meus
Que és do tamanho do Céu
E apenas menor que Deus!
Mário Quintana