Internacional – Restaurante de cegos circula pela Argentina
Publicação:

Um ônibus transformado em restaurante, que funciona às escuras com cozinheiros e garçons cegos, está mudando a visão da sociedade sobre os deficientes na Argentina.
No Gallito Ciego Móvil (Galinho Cego Móvel), pessoas com deficiência visual se encarregam de todo o serviço da cozinha e do salão. O ônibus tem circulado por escolas e empresas, prestando serviços de catering de café da manhã, almoço, merenda e jantar.
Ao comer na escuridão, o público vivencia as dificuldades enfrentadas pelos cegos e se dá conta dos próprios preconceitos.
O projeto é realizado em Buenos Aires e em municípios da província de Buenos Aires pela Audela, uma associação civil que promove a integração social e laboral de pessoas com deficiência.
“Oferecemos capacitação e trabalho às pessoas cegas e também buscamos sensibilizar e conscientizar o público a fim de construir uma sociedade mais amigável e transitável para todos”, diz Mónica Spina, diretora da Audela.
O projeto conta com dez deficientes visuais capacitados pelo Instituto Argentino de Gastronomia (IAG), que se alternam em equipes de três em cada evento.
“Eles fazem de tudo: limpam as mesas, preparam a comida e servem o público”, diz Mónica.
Inspirado no restaurante suíço Blinde Kuh (Vaca Cega), o Gallito funcionou entre 2002 e 2004 num salão do Instituto Roman Rosell, voltado à reabilitação de pessoas cegas. Em 2012, foi reinaugurado na versão sobre rodas.
Para isso, a Audela adaptou um ônibus com 14 metros de comprimento e 2,20 metros de altura. O veículo possui cozinha profissional, salão com ar condicionado para 25 pessoas, janelas vedadas com blackout e piso rebaixado. Uma rampa hidráulica permite o acesso de cadeirantes.
Vivência transformadora
No início de cada evento, os cozinheiros cegos dão as boas-vindas ao público na porta do ônibus. Todos sobem a escada do veículo em fila, com a mão sobre o ombro da pessoa à frente, e passam por um labirinto de cortinas que impede a entrada de luz.
Ao sentar-se às mesas, já não enxergam nada.
“As pessoas sobem no ônibus de uma maneira e descem de outra”, diz a cozinheira Karina Chediex, de 39 anos. “Elas tomam consciência de que nós, cegos, também somos capazes de fazer as coisas.”
O Gallito Ciego Móvil tem cozinha profissional, salão com ar condicionado para 25 pessoas, janelas vedadas com blackout e piso rebaixado. (Cortesia de Audela)
Foi o caso do licenciado em marketing Andrés Calzetta. Em 25 de março, ele participou de um jantar para empresários realizado em parceria com o restaurante Rosa Negra, em San Isidro, zona norte de Buenos Aires.
“Comer no Gallito foi surpreendente. Você aprende a se colocar no lugar do outro”, diz Calzetta. “Ali dentro, no escuro, éramos todos iguais.”
Karina conta que perdeu a visão aos 23 anos em consequência de diabete e erro médico.
“Foi muito duro seguir em frente. Mas não fechei um capítulo, e sim abri um livro”, diz ela, que deixou o filho, Matías, de 9 anos, orgulhoso. “Quando ele veio aqui, disse que estava muito contente de ter uma mamãe cega e pediu que eu desse uma palestra a 100 meninos de seu colégio.”
Humor contra preconceito
Após a sobremesa, as luzes se acendem e os cozinheiros coordenam um debate com o público.
Nessas horas, eles mostram que o humor é uma ferramenta valiosa para lidar com os preconceitos.
“As crianças costumam expressar suas curiosidades com total inocência. Uma vez, um menino perguntou aos cegos como eles tomavam banho. E a cozinheira respondeu, com naturalidade: ‘Nua, como você!’”, recorda Mónica. “Nas perguntas dos adultos, vemos uma preocupação de como a vida seria se eles também ficassem cegos.”
O cozinheiro Javier Suñé, 43, diz que o Gallito Ciego vem rompendo barreiras ao mostrar à sociedade que os cegos também são pessoas capazes.
“Muita gente relaciona cego com mendigo ou pensa que você perdeu a visão por descuido”, diz Suñé. “Mas a sociedade está mudando. As pessoas cegas têm mais acesso à computação e à universidade, por exemplo.”
Javier perdeu a visão de maneira progressiva devido à cegueira congênita.
“Perder um dos sentidos gera muito temor no início, mas potencializamos outros recursos”, diz ele, que também toca tuba na Banda Sinfônica de Cegos, da Secretaria de Cultura da Argentina.
Este ano, o restaurante móvel pretende rodar pela Argentina.
“Nosso objetivo é que muita gente passe pelo Gallito, mas também que ele seja um projeto federal e viaje pelas províncias”, diz Mónica. “Passaremos por Jujuy, Salta e Tucumán. Depois a ideia é ir para o sul do país.”
Com informações de Eduardo Szklarz para Infosurhoy.com